sexta-feira, 7 de agosto de 2009

QUEM SÃO OS NOSSOS MODELOS

Conversando acerca de uma viagem à Romênia
Tudo era muito grande, imenso, suntuoso. Agressivamente suntuoso. As portas eram enormes, os halls de entrada, os salões espaçosos e o teto ficava lá em cima. Assim, a sacada na qual eu começava a pisar também era espaçosa. A visão que se desenhava à medida que eu avançava era impressionante. Lá estava, a meus pés, a avenida central de Budapeste. Era desta sacada que o ditador Ceauscescu planejara falar à multidão. Mas, por ironia da história, ele nunca chegou a fazê-lo.

Ceauscescu foi ditador na Romênia de 1965 a 1989. Procurando implantar, com mão de ferro, um regime comunista no país, ele acabou sendo morto pelo seu próprio pessoal, na onda da derrocada do bloco comunista. Inspirado no modelo maoísta e no conceito do “grande líder” exercido na Coréia do Norte, ele queria fazer da Romênia um grande país — nem que fosse a ferro e fogo. E ele seria o grande líder dessa futura grande nação.

Munido deste sonho, Ceauscescu começou a construir na capital, Budapeste, um enorme prédio, que seria o segundo maior do mundo, perdendo apenas para o Pentágono, nos Estados Unidos. Ele investiu nesse prédio o valor correspondente ao produto interno bruto (PIB) de um ano da própria Romênia. Era muito dinheiro, investido em um prédio ridiculamente grande, com uma sacada grandiloqüente a desenhar uma vista imponente... com a Romênia a seus pés!

Era para esse prédio, pois, que o ditador planejava se mudar. Mas foi assassinado. O prédio só foi ocupado mais tarde e apenas em parte. O próprio Estado não precisa de um negócio tão grande, mas é preciso pagar as despesas da sua manutenção. Por isso, espaços e salões estão sendo cedidos para grupos e encontros, como aquele encontro de igrejas que me levou a andar por aqueles corredores enormes e a pisar naquela pequena grande sacada.

A fracassada grandiloqüência de Ceausescu
É impossível alguém visitar a capital da Romênia sem apontar para aquele grande prédio e começar a contar a história dele. É até questão turística. Por mais aviltante que seja a construção do prédio, de repente um bom “marketeiro” encontra os meios para sustentar esse “elefante branco”. E daquela sacada a gente até ri da loucura de mais um ditador presente nas páginas da história.

No entanto, o aspecto revoltante de todo esse processo é que o país vem pagando a conta do devaneio de um ditador. E geralmente são os pobres que pagam a parte mais salgada dessa conta. Na Romênia, as crianças têm sido as mais prejudicadas pela loucura de um ditador.

São milhares de meninos e meninas que teimam em viver abandonados em verdadeiros orfanatos-depósitos. Trata-se das crianças que seriam usadas pelo Estado para a construção de um grande país. Ainda hoje, mais de dez anos depois da morte do comunismo, a Romênia, um país de 23 milhões de pessoas, tem mais de 100 mil crianças que vivem em escolas residenciais, orfanatos e hospitais. Este é um país que desenvolveu uma verdadeira cultura de abandono de crianças e alimenta o mito de que o Estado “cuida das nossas crianças”.

Como o índice de crescimento da população não era satisfatório e as famílias, com seus escassos recursos, teimavam em não ter muitos filhos, o Estado criou o mito que dizia: “O Estado cuida das crianças. Vamos, pois, ter filhos”. Então as instituições-depósito, devidamente vedadas aos olhos públicos, foram se multiplicando por todo o país. Mas quando as fronteiras do país caíram, a máscara do cuidado das “nossas crianças” também caiu. E milhares de crianças sem pai e mãe começaram a mostrar a cara. Pobres, abandonadas e maltratadas faces, comprometidas pelo devaneio de um miserável ditador!

Mas não estou falando meramente da Romênia. Estou falando de todos nós, do nosso próprio país, das nossas próprias igrejas e das nossas próprias instituições. Quantas vezes os nossos planos grandiloqüentes não medem as conseqüências e o nosso estilo de liderança requer o sacrifício do outro!

De qual fonte bebemos água?
A experiência de Ceausescu acaba sendo ridicularizada pela história. Mas ela teima em ser repetida, com mais ou menos disfarces. Os grandes investimentos na imagem, a construção de obras inauguráveis, a obsessão em se manter no poder, o resgate da liturgia do cargo e a tentativa de abafar este ou aquele escândalo parecem ser água da mesma vertente a nunca matar a sede de poder. Ademais, a construção e a manutenção de currais eleitorais, a teimosia em manter a indústria da seca, o exercício do nepotismo e uma contínua prática política clientelista parecem dizer que somos farinha do mesmo saco. O poder é usado para nos promover e servir, custe o que custar.

Essa prática não é nova nem restrita. Ela invadiu o círculo dos próprios discípulos, como deixa claro aquela história da mãe de Tiago, que intercedeu pelo posicionamento estratégico dos seus filhos. E, como se isso não bastasse, os outros discípulos nem disfarçam e manifestam claramente o seu descontentamento: “Ora, ouvindo isto os dez, indignaram-se contra os dois irmãos” (Mt 20.24). Mas por que eles se indignaram? Talvez eu diria: “Como é que eu cheguei atrasado nessa?”

Em que medida os modelos que desenvolvemos e as práticas que desencadeamos são diferentes? Será que a cultura administrativa das nossas igrejas é diferente? Será que a prática do poder de muitos de nós, pastores, é muito diferente? Será que os critérios que determinam os mecanismos decisórios dos nossos presbitérios não usam o mesmo perfume da mãe de Tiago?

Ao perceber o qüiproquó que se instala entre os seus discípulos, Jesus diz: “Sabeis que os governadores dos povos os dominam e que os maiorais exercem autoridade sobre eles. Não é assim entre vós; pelo contrário, quem quiser tornar-se grande entre vós, será esse o que vos sirva.” (Mt 20.25-26.). Devemos ouvir este conselho sempre, pois a nossa vocação é seguir os passos de Jesus, que sempre usou a escada do poder para descer com as mãos estendidas a fim de receber e abraçar o outro.

Ver, compadecer-se e agir — o modelo de Jesus
Confesso que voltei da Romênia incomodado, revoltado e chateado. Como é possível viver de forma tão desligada da realidade? Como é possível ser tão radicalmente morcego e se alimentar do sangue do outro? Especialmente, como é possível revestir-se de uma cega crueldade, que consome o sangue das crianças?

Mas não posso apenas me revoltar com o outro. Preciso, isto sim, olhar no espelho. Será que o exercício da minha relação matrimonial, da minha
paternidade e do meu ministério é diferente?

Lá estava eu, sentado diante do ex-funcionário que me dizia na cara que a forma como se havia dado a sua saída do Centro de Pastoral e Missão, do qual eu sou o diretor, não fora correta. Eu estava precisando lhe pedir perdão. Portanto, é assim, marcado pelas minhas próprias faltas e pecados, que encontro uma vez mais Jesus, seu olhar, sua palavra e seu abraço.

Foi assim que li, outro dia, uma meditação sobre esta palavra: “Desembarcando, viu Jesus uma grande multidão, compadeceu-se dela e curou os seus enfermos” (Mt 14.14). Encantado, silenciei. Sorvendo a graça da atitude de Jesus e sendo desafiado a modelar a minha vida por suas palavras, concluo que a compaixão faz diferença, sim, enquanto o mero poder endurece e distancia.

Os olhos de Jesus enxergam o pequeno, o fraco e o excluído. Eles enxergam o perdido e os seus braços o alcançam. Os longos braços de Jesus abraçam o inalcançável e tocam o enfermo. Recolhem o solitário e recebem o excluído. Há um toque de salvação.

Ver, compadecer-se e agir foi um trinômio exercitado por Jesus no decorrer do seu ministério, um trinômio que quer invadir a igreja e ser praticado pela sociedade.

A sacada de Jesus é, pois, uma cruz que atravessa fronteiras e cobre abismos. Uma cruz que nos ensina a ver o outro e, abraçado com ele, buscar guarida no acalento da sombra da cruz. Uma cruz que aponta para a possibilidade de recomeçar e modelar a vida pelo exemplo de Jesus.

Valdir Steuernagel é pastor luterano e professor no Centro de Pastoral e Missão, em Curitiba. É autor de, entre outros,
Para Falar das Flores... e Outras Crônicas.

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